O Bram Stoker depois de Drácula

Spoilers dos livros Os Sete dedos da Morte e A Toca do Verme Branco (mas você se importa?)

Como esse ainda é um dos meus primeiros textos sobre o assunto, é de bom tom explicar que há alguns anos venho fazendo um projeto pessoal de conhecer mais obras com temáticas de vampiro (você encontra outros textos desse projeto aqui!). Isso, obviamente, incluiu a leitura de “Drácula” de Bram Stoker, publicado em 1897, que consolidou várias convenções existentes das criaturas em uma história incrível, mudando a forma com que o mundo conhecia os vampiros para sempre.

E isso tudo me gerou um dúvida, que acredito ser comum a todo mundo tenha lido o livro: o que mais Bram Stoker fez? Se eu ler suas outras histórias ficarei também maravilhado?

Bom, essas dúvidas foram apenas o começo de uma jornada de seis meses para conseguir terminar de ler “Os Sete Dedos da Morte e A Toca do Verme Branco” publicado pela Nova Fronteira e traduzido por Stefania A. Lago, que traz dois romances posteriores do autor, de 1903 e 1911 respectivamente.

Capa do Livro Os Sete dedos da Morte - A Toca do Verme Branco de Bram Stoker. A capa do livro é toda roxa, com o nome das histórias em destaque em cima e embaixo, com uma silhueta de uma mão com sete dedos e o desenho de uma cobra. Há também vários detalhes marrons adornando a capa do livro com elementos como caveiras e folhas.

Capa do Livro Os Sete dedos da Morte - A Toca do Verme Branco.

Os Sete Vermes da Morte Branca #

Em Os Sete Dedos da Morte (do original: The Jewel of Seven Stars) acompanhamos o advogado Malcolm Ross sendo acordado de madrugada para ir a casa do egiptólogo Abel Trelawny, encontrado inconsciente, e é incubido da missão de ajudar sua filha Margaret (e a polícia) a descobrir o que aconteceu com o pai. A grande quebra de expectativa do romance se dá por ele apresentar diversos elementos a serem decifrados (quarto trancado, janela aberta, marcas no corpo) para, mais tarde, revelar que a explicação é mística. No fim, tudo tem a ver com o fascínio britânico pelos “Mistérios do Egito Antigo”, pois o furto e transporte de um sarcófogo e diversos itens funerários para Londres resulta em um ritual para ressurreição de uma antiga rainha egípcia.

Capa original de Os Sete dedos da Morte. Ela é roxa escura, e o título é The Jewel of Seven Stars by Bram Stoker. Há uma ilustração de um escaravelho iluminando o título do livro.

Capa original de Os Sete dedos da Morte de 1903.

O mais interessante dessa história aconteceu fora das páginas, pois ela tem duas versões! O que muda é basicamente o resultado do ritual: Em sua primeira publicação em 1903, o fim era mais trágico e sombrio, enquanto em 1912, Stoker amenizou o encerramento do romance em sua republicação.

Bom, mas não tinha como a outra história A Toca do Verme Branco ser pior, não é mesmo? Pois bem, ele pode até não ser pior, mas ele se esforça. Nela, somos apresentados a Adam Salton, que ao viajar para conhecer seu tio, chega em um condado cheio pessoas estranhas, como: o nobre Edgar Caswall; e a misteriosa Lady Arabella, residente de Diana’s Grove, local em que lendas contam ser o repouso de uma terrível cobra gigante.

Capa original de A Toca do Verme Branco. Ela é vermelha, com apenas a parte superior direita com o título The Lair of the White Worm e o nome de Bram Stoker em dourado.

Capa original de A Toca do Verme Branco de 1911.

A trama até seria interessante, se não fosse tão desconexa. Há alguns temas repetidos de Drácula, como Edgar Caswall atrapalhando a vida das primas: a frágil Lilla Watford e forte Mimi Watford, chegando a matar a primeira (ecos de Lucy Westenra e Mina Harker do romance Drácula). E esse assassinato não ocorre de uma forma convencional, e sim após um duelo de hipnose/influência travado entre personagens, em uma cena anacronicamente similar às famosas cenas da novela “Os Mutantes - Caminhos do Coração”.

Enquanto o livro anterior contava com a fetichização do Egito, este possui um teor racista, condensando diversos estereótipos em um mesmo personagem negro. Oolanga é o capanga de Caswall, retratado como amedrontador, agressivo, conhecedor de misticismos africanos e é quem persegue Lady Arabella por querer tê-la para si e encontra sua morte ao ser jogado (por ela) no fosso onde reside o Verme Branco.

No fim, tudo é resolvido com explosivos. Definitivamente Stoker não conseguiu repetir seu uma vez alcançado êxito de escrever um romance interessante com personagens descobrindo a existência de um ser folclórico que precisa ser derrotado. E eu não estou sozinho nessa não! Deixo como evidência uma das tirinhas que o quadrinista André Valente publicou em sua série inacabada “André Valente’s O LAR DA LESMA BRANCA de Bram Stoker”:

Capa e Página 25 da adaptação O Lar da Lesma Branca. A imagem contém duas páginas, a primeira é a capa, contendo apenas o título e a segunda é a página 25 com o desenho do próprio autor lendo o livro e falando: Céus, esse livro parece bem ruim. Tudo isso só para dizer que o cara chegou. Uma prosa tão gostosa quanto um tratamento de canal sem anestesia. Não é à toa que até o mala do H. P. Lovecraft achou esse livro chato.

Nas palavras do próprio André Valente: Não é à toa que até o mala do H. P. Lovecraft achou esse livro chato.

Obviamente, a curiosidade mórbida me levou a assistir os dois principais filmes que adaptam essas duas histórias: “O Túmulo do Sangue” de 1971 e “A Maldição da Serpente” de 1988.

Poster de Blood From the Mummy's Tomb, muito estilizado, com uma espécia de recorte colado com uma cena da protagonista sendo estrangulada por uma mão decepada. Também há o poster de The Lair of the White Worm, com a vilã Lady Sylvia em seu formato reptiliano, com longas presas, olhos amarelos e uma expressão aterrorizadora em um fundo vermelho vivo que oferece um alto contraste.

Posteres (lindos) dos filmes!

A Maldição da Múmia? #

A Hammer Film Productions tinha uma grande produção de filmes de terror no século passado e muitos problemas aconteciam na gravação deles. Seria muito viés de confirmação de minha parte afirmar que justamente a filmagem de “O Túmulo do Sangue” (Blood from the Mummy’s Tomb) de 1971 estava amaldiçoada?

Cena dos arqueólogos na tumba da Rainha Tera em O Túmulo do Sangue. O plano mostra 5 arqueólogos com semblantes assustados ao redor de um sarcófago.

Cena dos arqueólogos na tumba da Rainha Tera em O Túmulo do Sangue.

A primeira evidência foi a saída de Peter Cushing do projeto (eterno professor Van Helsing), que já havia gravado algumas cenas, para cuidar de sua esposa que estava muito doente. Logo depois o próprio diretor do filme, Seth Holt, veio a falecer, sendo substituído por Michael Carreras. Décadas depois, Valerie Leon, a deslumbrante protagonista comentou o ocorrido:

Eu estava animada quando fui escalada para o papel principal em Blood from the Mummy's Tomb [...]. Mas fiquei ainda mais empolgada ao saber que Peter Cushing iria interpretar meu pai, porque ele era... bem, ele era o mestre do horror! Nunca esquecerei o primeiro dia de filmagem [...] Está gravado na minha mente. E então, no final do primeiro dia, ele soube que sua amada esposa, Helen, estava gravemente doente, e ele teve que deixar o filme. Fiquei completamente desolada. Tão triste por ele e por não poder trabalhar com ele. [...] O filme foi muito azarado, realmente. Perder Peter logo no início foi muito triste. O filme foi muito azarado, realmente. Perder Peter logo no início foi muito triste. Depois soubemos que um jovem do departamento de arte morreu em um acidente de moto [...] e então, depois de cinco semanas de filmagem, Seth Holt, nosso querido diretor, passou a soluçar. [...] Um dia entrei no estúdio e me disseram que Seth e sua esposa haviam dado um jantar na noite anterior e, quando os convidados foram embora, ele simplesmente virou para ela e disse: “estou partindo”, e morreu de um ataque cardíaco. Aquilo me abalou muito.

(Valerie Leon, 2020)

Foto em preto e branco de bastidores de Valerie Leon (sorridente) contracenando com Peter Cushing, que segura sua mão ao colocar uma joia em seu dedo.

Foto de bastidores de Valerie Leon contracenando com Peter Cushing.

Apesar das tragédias, o filme foi lançado e, surpreendentemente, é uma boa adaptação do livro de Stoker, não só em transpor para o cinema a história, mas melhorando sua estrutura e removendo seu principal problema da quebra de expectativa quanto ao mistério do que aconteceu a Abel Trelawny.

O filme inicia no aniversário de 21 anos de Margaret, que ganha de seu pai egiptólogo uma joia com sete estrelas, e ela logo descobre no porão de sua casa uma tumba com a rainha egípcia chamada Tera, que está completamente preservada e é idêntica à jovem. Logo ela descobre ter nascido no dia em que a expedição britânica que seu pai fazia parte violou a tumba e o filme passa a retratar a transformação de Margaret em Tera, assim como sua busca pelos artefatos para, enfim, concluir o ritual de reencarnação da rainha.

O charme fica para o final, que consegue ser criativo, diferente dos dois anteriores publicados por Stoker e deixar o público com uma pulga atrás da orelha.

A Serpente Branca #

“A Maldição da Serpente” (The Lair of the White Worm), de 1988, em sua missão de adaptar o livro, escolheu por diminuir o número de personagens, abandonar a sutileza da relação de Lady Arabella com o verme e focar no aspecto aterrorizante do monstro.

A trama apresenta o lorde James D’ampton (não Adam Salton das páginas), conhecido por ser descendente daqueles que derrotaram um dragão folclórico da região. Ele passa a suspeitar de algo estranho quando o arqueólogo Angus Flint encontra um enorme fóssil de cobra no terreno onde moram as irmãs Eve e Mary Trent (não Lilla e Mimi Watford).

Cena de A Maldição da Serpente mostrando o lorde James D'ampton, Angus Flint, Eve e Mary Trent em frente à uma mesa cheia de comida. Eles estão em um baile pomposo conversando enquanto se servem

Sim, são Hugh Grant e Peter Capaldi novinhos! Eles interpretam James D'ampton e Angus Flint respectivamente.

O nome das irmãs, no entanto, é só o começo do forte elemento católico presente na nova obra. A ameaça sibilante aqui ganha um contexto flagrantemente religioso, remontando à própria serpente que habitava o Éden e que teria sido punida pelo “Falso Deus”. Denominada Dionin, ela estaria adormecida em uma caverna e precisaria de um ritual de sacrifício virginal para voltar a assombrar o mundo.

A figura vilanesca a preparar esse terrível retorno é Lady Sylvia Marsh (não Lady Arabella March), proprietária de Temple House (não Diana’s Groove) que se comporta como uma cobra, possui presas, transforma suas vítimas em lacaios sibilantes (tal qual uma vampira) e é até mesmo é encantada por músicas de instrumentos de sopro.

Cena de A Maldição da Serpente mostrando Lady Sylvia saindo de um vaso tal qual uma cobra.

Lady Sylvia em A Maldição da Serpente.

O filme é bastante gráfico em representar o terror do verme branco, mostrando Jesus Cristo crucificado sendo subjugado por uma enorme serpente, enquanto soldados romanos abusam de mulheres. O tema estupro é o grande horror que o verme traz as mulheres, sendo mostrado em visões ou insinuado, pelos objetos fálicos de Lady Sylvia. Por outro lado, aos homens, cabe apenas a ameaça de serem enganados e mortos pela mulher sibilante e sensual que realiza seus desejos para com o sexo oposto. Curiosamente, essas ações são diferentes para cada idade: O adolescente ela convida à sua casa, brinca de jogos de tabuleiro e depois dá banho, misturando o aspecto maternal com uma forte sugestão sexual em suas vestes; O adulto James D’ampton é acometido por um sonho no qual esbanja sua condição financeira em um avião particular e fantasia com duas mulheres lutando no chão por ele; e o policial mais velho é enganado por, simplesmente, ser bem tratado e receber atenção após ser mordido por uma cobra.

A Resposta da Pergunta Secreta #

Fiquei imaginando qual foi a reação das pessoas que assistiram o filme e resolveram buscar o livro com a história original. Se a decepção foi a mesma que a minha ao buscar algo tão bom quanto Drácula nos livros posteriores de Bram Stoker. No fim, acabei por responder todas as perguntas que me fiz: descobri o que mais ele escreveu e definitivamente não fiquei maravilhado em ler mais obras suas. Inclusive declaro que irei encerrar minha busca por aqui (mesmo sabendo que existem outros livros em contos).

Depois de seis meses de tortura me obrigando a ler esses dois livros, acabei respondendo a uma pergunta que nem tinha me feito: Por que quando se fala de Bram Stoker só se fala de Drácula?

Cena final de A Maldição da Serpente com lorde James D'ampton, Angus Flint um ao lado do outro após a luta final. James está contemplativo e fumando um cigarro e Angus está todo sujo olhando para ele.

A cena final de A Maldição da Serpente reflete meu estado ao terminar a leitura do livro com as duas histórias.

Referências Bibliográficas

  • Filme A Maldição da Serpente (1988) dirigido por Ken Russell.
  • Filme O Túmulo de Sangue (1971) dirigido por Seth Holt e Michael Carreras.
  • Livro Os Sete Dedos da Morte e A Toca do Verme Branco, traduzido por Stefania A. Lago. Nova Fronteira, 2020.
  • Depoimento de Valerie Leon no Documentário Peter Cushing: In His Own Words. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Wlayp6xx4Mk.