A dança das cadeiras dos desenhistas das primeiras histórias do Demolidor
A estreia do Homem sem Medo #
Em abril de 1964 o Demolidor estreava na Marvel e a própria capa da revista já era cheia de promessas: a) ele seria um personagem com a mesma relevância que o Homem-aranha b) também uma adição a um universo que já contava com figuras fabulosas, como o Quarteto Fantástico e c) iria apresentar novos personagens, como Matt Murdock, Karen Page e Foggy Nelson!
Todos esses personagens estão capa, resultando em algo que parece um catálogo de supermercado cheio de cabeças flutuantes!

Capa de Demolidor nº 1 (1964).
Esta primeira revista contava com Stan Lee no roteiro e Bill Everett creditado como desenhista… No entanto, a verdade é que ele não conseguiu cumprir o prazo e, no fim, a maior parte da edição fora desenhada por Sal Brodsky (responsável pelo design de vários logotipos de super-heróis Marvel) com o apoio de Steve Ditko, um dos grandes ilustradores da Marvel à época. Portanto, considerando que o conceito original do herói fora esboçado por Jack Kirby (utilizado na capa), temos a contribuição total de quatro desenhistas!
Situações assim não eram incomuns na Marvel. E até mesmo Bill Everet, que tinha credibilidade e uma extensa carreira nos quadrinhos (havia criado Namor, o príncipe submarino, 25 anos antes), também foi vítima de uma particularidade no processo criativo da editora, que com certeza merece uma explicação mais detalhada!
O Método Marvel #
Nessa época, o editor Stan Lee, para dar conta da grande produção e manter o controle criativo sobre as tramas, utilizava uma metodologia que ficou conhecida como “Método Marvel”: ele discutia ideias sobre as histórias (pessoalmente ou por telefone) com o desenhista e cabia a este projetar e desenhar as 20 páginas com o esse pequeno enredo. Depois, Lee recebia as folhas finalizadas (que nem sempre era o que ele esperava) e criava os textos, recordatórios e balões de fala.
Para os não iniciados no processo de criação de quadrinhos: usualmente o escritor é responsável por criar não só o texto, mas os roteiros (por isso chamado de roteirista), que já contam com as falas dos personagens e a indicação do que será desenhado em cada páginas e quadro. A diferença no processo da Marvel é que Stan Lee, em retrospecto, só contribuia com uma ideia e depois refinava a história que foi majoritariamente criada pelo desenhista, que assumia em grande parte a função de roteirista ao projetar as páginas, adicionando tramas (e anotando sugestões de diálogos) e até mesmo personagens que não haviam sido discutidos antes.
Não era apenas questão de recrutar gente que soubesse desenhar. O “Método Marvel” [...] exigia que os artistas soubessem transformar um argumento básico numa história bem ritmada e visualmente concisa, com base na qual **Lee** escreveria os diálogos. Ele queria que os quadros funcionassem como filmes mudos, para minimizar a necessidade de explicação verbal. Os artistas idealmente colaborariam com suas próprias ideias narrativas (personagens e subtramas) às histórias, o que Kirby e Ditko efetivamente faziam.
Aqui vale comentar também que existe discussão se o próprio Lee realmente preenchia todos os balões de texto, ou eles eram escritos por Larry Lieber, Ron Whyte ou outros autores não creditados até hoje.
E isso traz a extensa discussão sobre a autoria das histórias: quem realmente as criava? O documentário Stan Lee (2023) faz um desserviço em tentar reestabelecer a figura de Stan como o criador da Marvel, inclusive resgatando uma gravação de um programa de rádio dos anos 90 no qual Lee discutiu com Jack Kirby sobre criação e créditos devidos.
Para contextualizar a gravidade da situação: Kirby (que esteve à frente da maioria dos heróis da editora) só passou a verbalizar mais sua insatisfação com o editor após sua saída da Marvel em 1970, porém Steve Ditko já era brigado e não falava com Lee desde as primeiras edições que desenhou de Homem-aranha e Doutor Estranho. E, já que não se comunicavam diretamente, o conflito acontecia por meio de discordâncias entre o que um desenhava e o que outro escrevia por cima, com direito a várias provocações que eram adicionadas no texto das revistas. Um verdadeito cabo de guerra no processo editorial.
Pra mim, posicionar os balões de diálogo sempre foi algo muito importante, porque isso faz parte da arte, e muita gente não se dá conta disso. Tem gente que simplesmente joga o balão onde tiver espaço. Mas olha só: você tem um quadro com uma ilustração, com áreas em branco e outras cheias de desenhos. Quando você coloca um balão de fala com uma setinha, um efeito sonoro, ou uma legenda em cima, do lado ou embaixo, você está contribuindo com a arte. Aquilo vira parte da ilustração. Eu levava mais tempo decidindo onde iam os balões do que escrevendo o diálogo em si.
Essa declaração de Lee poderia até ser usada como argumento, se não houvessem várias páginas originais que mostrassem como os desenhistas da época também sugeriam diálogos (até mesmo para medir tamanho de balões e posicionar melhor os personagens nos quadros). Há várias páginas de Kirby com indicações de falas, assim como as originais de Bill Everett para o Demolidor:

Seguinda página da edição nº 1 de Demolidor (1964), mostrando a página original antes de ser colorizada. É possível ver que há uma série de correções nos tamanhos dos balões, o que pode indicar que Bill Everret teria escrito os textos das suas páginas e esse texto depois foram substituído por textos do Stan Lee/Sam Rosen.

Sexta página da edição nº 1 de Demolidor (1964), mostrando a página original antes de ser colorizada. Nela também há uma série de correções nos tamanhos dos balões e indicações rasuradas nos cantos da página.
Nessas páginas originais de Demolidor nº 1 é possível reparar as rasuras na folha, corroborando para uma maior influência de Bill Everett na concepção do personagem: Assim como Kirby, ele teria escrito os textos, que foram substituídos ou adaptados por Lee e sua equipe posteriormente. Além disso, Bill também tinha uma filha deficiente visual, o que poderia ter sido a real influência por trás de toda a criação do herói (diferente do que Stan Lee alegava que eram as "suas inspirações” no meu último texto).
E começa a dança das cadeiras… #
Esse tão problemático “Método Marvel” em muito impactou as edições de Demolidor, porque além de exigir que os artistas criassem as histórias, Lee queria encontrar alguém que mantivesse a qualidade dos seus dois melhores (que já estavam ocupados em suas próprias publicações: Ditko com Homem-aranha e Doutor Estranho; e Kirby com todo o resto…):
Quando novos artistas estreavam num título, Lee pedia a Kirby para fazer o layout da primeira edição, dando aos novatos as rodinhas de bicicleta para a expressão visual. Stan queria que Kirby fosse Kirby, que Ditko fosse Ditko... e que todos os outros fossem Kirby, disse Don Heck
Com Everett de fora por “não conseguir cumprir o prazo”, as próximas edições foram entregues à Joe Orlando, que ficou na revista apenas até a quinta edição e, novamente o Método Marvel foi o responsável:
“O problema”, admitiu Orlando, “é que eu não era Jack Kirby. Jack ou Ditko e mais um punhado de outros conseguiam pegar algumas frases de trama e criar vinte páginas, que Stan levava uma ou duas tardes para adicionar os diálogos.”

Capa de Demolidor nº 3 (1964).
O próximo escolhido foi o mentor de Orlando: Wally Wood, que, assim com os outros, sofreu com o ritmo exaustivo de trabalho. Para piorar, Lee contribuiu significativamente para pesar o clima na Marvel, vide a capa da estreia de Wood, na qual adicionou um texto de apresentação especial (que Kirby e Ditko nunca tinham ganhado até então): “Sob a perícia artística do famoso ilustrador Wally Wood, o Demolidor atinge novas glórias!”. Não bastasse isso, a capa em questão foi desenhada por Jack Kirby, não Wood.

Capa de Demolidor nº 5 (1964).
Não demorou muito para o próprio Wally Wood ficar insatisfeito e começar a questionar. Ele logo percebeu e questionou que esse método de desenhar antes do roteiro, era criar o argumento sem ser pago por isso, além de não ganhar o devido crédito. E o que nosso querido editor fez sobre isso? Resolveu creditá-lo de forma “bem-humorada” como autor da história na edição nº 10, mas o artista sabia que era apenas uma forma jocosa de confrontá-lo:

Primeira página de Demolidor nº 10 (1965) com a desculpa que Stan Lee inventou para dizer que Wally Wood havia escrito a história em questão.

Sequência final de Demolidor nº 10 (1965) com o ataque de Stan Lee à Wood no último quadro.
Com esse clima pesado, Wood foi substituído por Bob Powell logo no número seguinte e depois foi a vez da estreia do jovem John Romita (conhecido hoje como John Romita Sr.), que Stan convenceu a voltar a trabalhar na Marvel (mesmo após ser demitido pelo próprio em 1957). Romita até que ficou mais tempo que os seus predecessores, desenhando da edição 12 à 21, que incluíam dois crossovers do Demolidor, um com o famoso Homem-aranha e outro com o Kazar.

Capa de Demolidor nº 12 (1965).
Foi só na sua vigésima segunda revista que nosso super-advogado encontrou o seu artista fixo (que duraria centenas de histórias antes de ser trocado): Gene Colan, um aficionado por cinema, que inseriu esse interesse à composição e narrativa das páginas:

Página de Demolidor nº 20 (1966).
As ilustrações chiaroscuro e atmosféricas deram um peso ao personagem que não existira com Wood nem com Romita e, o mais importante, finalmente o diferenciaram do Homem-Aranha. Ritmo não era o ponto forte de Colan, ele tinha o perigoso hábito de desenhar cenas de tirar o fôlego em quadros grandes e só depois perceber que tinha que fazer caber a outra metade da história nas poucas páginas finais. Para Lee, porém, o ganho em amplitude dramática compensava a dor de cabeça logística.
E assim, em 21 edições, 7 artistas haviam passado pelo personagem: um retrato de como era o trabalho na Marvel na década de 60. Desenhistas esses que contribuiram com bem mais do que apenas desenhos, pois cabia a eles criarem mensalmente 20 páginas de história.
Por mais que Stan Lee tenha se creditado como roteirista em todas essas edições, ele na verdade tinha duas principais atribuições: editor de quadrinhos, com a função de cuidar do projeto, da equipe e do produto final que chegava às bancas; E vendedor, se auto-promovendo como rosto da Marvel (cujo dono era seu parente), contribuindo significativamente para a divulgação e popularização dos gibis, mas também responsável pelo apagamento dos grandes criadores que trabalharam junto dele.
Mas aí vem a pergunta: esse esforço todo em cima do Demolidor deu certo? O personagem tornou-se o novo escalador de paredes e caiu nas graças do público?… Bom, isso é assunto para o próximo texto!
Referências Bibliográficas
- Documentário Stan Lee (2023).
- Documentário “The Men Without Fear” (2003) entrevistando Stan Lee no conteúdo extra do DVD do filme Demolidor.
- Edições 01 a 21 de Demolidor, presentes no Encadernado Demolidor: Edição Definitiva vol. 1, 2023.
- Livro “Marvel Comics : a história secreta” (2013) de Sean Howe.
- Texto “Lee & Kirby & Ditko & Everett & Brodsky: The Long Road to DAREDEVIL #1” do site The Tom Brevoort Experience, publicado em dezembro de 2020