Karen Page e os 50 tons de Preconceito
Continuando a prazerosa jornada de ler as histórias em quadrinhos do Demolidor em ordem cronológica (você pode conferir outros textos dessa saga pessoal aqui), decidi trazer à tona algo que incomoda demais, está presente desde a edição nº 1 e perdura demasiadamente nas revistas do herói…
Como analisado no meu texto sobre a concepção do personagem, a cegueira de Matt Murdock é intrínseca e essencial para sua origem, principalmente por ser diretamente contraposta aos seus poderes e também motivo de Stan Lee firmar a alcunha “O Homem sem medo”, por “ousar atuar como herói apesar da sua deficiência”.
Como os créditos das histórias são dados a Lee (polêmicas quanto a quem realmente criava as histórias à parte), irei atribuir a ele as escolhas de falas e tramas abordados aqui. Sem mais delongas, o fato desconcertante é: desde a primeira edição, Karen Page não é apenas o interesse romântico do nosso protagonista, como também é a porta-voz do preconceito nas histórias em quadrinhos.
Sequência de Demolidor nº 1 (1964).
A secretária Karen Page #
Enquanto Foggy Nelson, melhor amigo de Matt (lembrem-se disso), é apresentado como colega de quarto na faculdade de direito, Karen surge como secretária do recém-inaugurado escritório Nelson & Murdock Advogados, onde é instantaneamente inserida em um triângulo amoroso com os dois.
Não era a primeira vez que secretárias eram criadas para ser namoradas dos super-heróis da Marvel, à época, Peter Parker contava com Betty Brant (que trabalhava no Clarim Diário); Tony Stark com Pepper Potts e o Dr. Donald Blake (alter-ego de Thor) tinha algo similar com a presenaça da fiel enfermeira Jane Foster. Corroborando para o clichê dessa representação, em “A História Secreta da Marvel” de Sean Howe, temos a curiosidade de que, no período pós-guerra entre 1945 e 1947, o novo rico Stan Lee se gabava sobre suas secretárias:
Os freelancers ficavam pasmos com o desfile de secretárias, todas belíssimas. “Eu tinha três secretárias só para mim, que sempre tinham serviço. Eu costumava ditar as histórias na minha sala. Pensando bem, eu era um exibido quando tinha vinte e poucos. Ditava com pressa a página de uma história para uma menina e, enquanto ela transcrevia, eu ditava a página de outra história para outra menina, às vezes uma terceira para a outra. Era uma sensação de poder, de que eu conseguia manter três secretárias ocupadas com três histórias, e eu sabia que de vez em quando tinha gente olhando - e eu todo orgulhoso… eu achava o máximo ter plateia”
Voltando às histórias, não havia desenvolvimento algum de personagem que desse algum motivo às paixonites agudas que os afligiam para além do aspecto físico (também provável razão do porquê Karen optar por Matt e seu porte físico). O drama de Matt se resumia a ser apaixonado por Karen, mas ter receio de se declarar, pois sabia que seu melhor amigo também a amava, além do medo de não conseguir se dedicar a um possível casamento, uma vez que atuava secretamente como super-herói.
Sequência de Demolidor nº 5 (1964).
Na outra ponta do triângulo estava Karen, perdidamente apaixonada por Matt, e atormentada por um dilema: ela não conseguia se imaginar vivendo com um homem cego.
Sequência de Demolidor nº 1 (1964).
Capacitismo e balões de fala #
Por dezenas de vezes, Stan Lee preencheu os balões de fala e pensamento de Karen com expressões preconceituosas. É difícil interpretar que a intenção do autor era fazer uma crítica, na qual “nem mesmo uma pessoa que convive diariamente e é apaixonada por uma pessoa cega, está livre de ser preconceituosa”. Muito pelo contrário: Karen certamente foi escrita para ser uma personagem adorável, disputada entre os dois amigos advogados. E por isso que é tão desconfortante ler essas histórias atualmente e simpatizar com a personagem.
Sequência de Demolidor nº 2 (1964).
Sequência de Demolidor nº 3 (1964).
Sequência de Demolidor nº 4 (1964).
O capacitismo é expresso por meio de atitudes intencionais ou não, internalizadas pela sociedade. Muitas vezes insultuosas, quer seja de forma direta, como a utilização de termos pejorativos, olhares ofensivos, afastamento corporal; quer seja de forma velada, disfarçada de comportamentos protetores, piedosos, bem como a formulação de exaltações à capacidade de superação ou algo similar, a cultura capacitista se faz presente.
É muito flagrante como as expressões da personagem demonstram o seu comportamento capacitista e como a cegueira de Matt é encarada como um problema apenas para a própria Karen, chegando a existir um arco narrativo inteiro (que dura algumas edições) no qual a personagem tenta incessantemente convencer Matt a se submeter a uma cirurgia para recuperar sua visão.
Sequência de Demolidor nº 8 (1965).
As inúmeras discussões do casal, somados ao Foggy com ciúmes de Karen, definem as primeiras tramas do alter-ego do herói. Stan Lee melhora um pouco a dinâmica ao desenvolver melhor Foggy (adicionando uma campanha para promotor de Nova Iorque e também um novo par romântico, Deborah Harris) e insere um novo conflito que abala as amizades: Karen lê a carta que o Homem-aranha enviou para Dr. Murdock, se referindo a ele como Demolidor.
Sequência de Demolidor nº 25 (1967).
E é neste momento que os leitores são apresentados a uma das piores ideias que já passaram pelo personagem. Matt precisa atuar como seu irmão gêmeo fictício e, para mudar sua personalidade, Stan Lee o escreve como um cara “descolado”, o que inclui flertar abertamente com a secretária e ser gordofóbico com seu melhor amigo.
Sequência de Demolidor nº 25 (1967).
Tudo isso torna mais plausível a opinião do editor da Marvel Marv Wolfman em uma entrevista em 1976, quando relacionou as dinâmicas do elenco de apoio do herói como um dos fatores para a falta de popularidade inicial do personagem. Felizmente, 16 revistas depois, o próprio Matt não consegue mais manter a farsa e decide forjar a morte do Demolidor (e consequentemente de seu irmão gêmeo babaca).
Capa de Demolidor nº 25 (1968).
Os leitores só teriam histórias com uma abordagem mais séria envolvendo pessoas com deficiência visual nas últimas edições creditadas ao Stan Lee, enquanto relacionamentos amorosos mais complexos só surgiram quando Gerry Conway assumiu os textos, tirou Karen de cena e adicionou um novo e super-heróico amor na vida de Matt. E isso tudo você confere nos meus próximos textos!
Referências Bibliográficas
- Edições 01 a 21 de Demolidor, presentes no Encadernado Demolidor: Edição Definitiva vol. 1, 2023.
- Edições 22 a 39 de Demolidor, presentes no Encadernado Demolidor: Edição Definitiva vol. 2, 2023.
- Edições 40 a 63 de Demolidor, presentes no Encadernado Demolidor: Edição Definitiva vol. 3, 2024.
- LAGE, S. R. M.; LUNARDELLI, R. S. A.; KAWAKAMI, T. T… O Capacitismo e suas formas de opressão nas ações do dia a dia. Encontros Bibli, v. 28, p. e93040, 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/eb/a/HSy9D6BjLP6P9Gv3mtBvVyn/.
- Livro “Marvel Comics : a história secreta” (2012) de Sean Howe.