O Frankenstein de Del Toro ou o Édipo moderno
Spoilers do livro Frankenstein (1818) e do filme Frankenstein (2025)
Guillermo Del Toro é, sem dúvida alguma, responsável por muitas das coisas que gosto. Tudo começou com o filme de 2004 do Hellboy e ficou mais claro ainda com O Labirinto do Fauno dois anos depois. Suas obras possuem uma aura de histórias sendo contadas, que, apesar de integrarem Hollywood e muita das suas convenções, conseguem ser muito autorais. E isso fica muito claro pela representação única que ele faz de monstros.
Uma das melhores seleções de elenco do cinema (Hellboy, 2004).
Justamente por isso, o anúncio de que o diretor estava trabalhando em um novo material sempre me deixou empolgado, em detrimento da constante tristeza ao lembrar que a trilogia de Hellboy nunca será concluída. Dentre os diversos projetos que o diretor esteve envolvido e não foram para a frente sempre figuraram adaptações de romances literários, como Nas Montanhas da Loucura de H. P. Lovecraft e O Conde de Monte Cristo de Alexandre Dumas, mas, finalmente, dois desses fadadaos projetos enfim viram a luz do dia (devido à sua relação com a Netflix): As Aventuras de Pinóquio de Carlo Collodi e Frankenstein de Mary Shelley.
Não há muito o que falar sobre Pinóquio por Guillermo Del Toro, além de destacar os aspectos que geralmente estão presentes nas obras do diretor: “a representação mais linda possível do encontro (por vezes violento) de um conto de fadas com a realidade, somado à inserção em um contexto histórico real”. É quase como a fórmula perfeita para me agradar (e a tantas outras pessoas), presente não só aqui, mas também em A Forma da Água, Labirinto do Fauno, Espinha do Diabo e Cronos.
Assistam Cronos! (Cronos, 1992).
A releitura e a adaptação #
O grande problema do novo Frankenstein é A Forma da Água existir. O filme de 2017 (vencedor do oscar de melhor filme e melhor roteiro) é uma releitura de Del Toro de O Monstro da Lagoa Negra de 1954, no qual, segundo o próprio, ao assistir quando criança, se decepcionou com a criatura e a moça não ficarem juntos no final. Portanto, o roteiro premiado utiliza apenas de elementos do filme original como base para desenvolver seu novo tema: provar a materialidade do relacionamento amoroso com um “monstro”. E em seu sucesso, fez com que o mundo compartilhasse de seu fascínio por essas criaturas.
Sou #TeamDougJones (A Forma da Água, 2017).
O Monstro da Lagoa Negra, no entanto, não é, nem de perto, algo tão conhecido (e influente) como Frankenstein. Talvez por essa preocupação em enfim conseguir realizar um projeto de mais de 30 anos, o diretor acabou por ficar no meio do caminho: fez uma releitura (adicionando uma temática central sobre um ciclo de paternidade), mas também uma adaptação. O resultado em tela é um roteiro que tenta algo diferente, mas não consegue ser bem sucedido por colocar a si próprio como refém dos acontecimentos do livro de Mary Shelley.
A Força de Mary Shelley #
Quando falamos em monstros famosos do Cinema (a maioria em decorrência das produções da Universal Pictures e Hammer Films Productions do século passado), temos Drácula e Frankenstein como os exemplos mais expressivos, não é à toa que ambos originam de livros incríveis (e, curiosamente, compartilharem de uma gênese literária em comum: um encontro de amigos em uma noite de 1816, conhecido como o ano sem verão).
Embora eu ame Drácula escrito por Bram Stocker (e tenha um projeto pessoal todo baseado nele), após minha recente leitura de "Frankenstein ou o Prometeu Moderno, não há como negar a força enorme que esse livro escrito por Mary Shelley carrega. É merecedor de todo o reconhecimento que possui como a primeira obra de ficção científica e traz uma discussão filosófica profunda e (que será para sempre) atual: as consequências da ambição humana.
Vamos, então, às comparações: Quando o diretor Francis Ford Coppola adapta Drácula de Bram Stoker em 1992, ele incluiu todos os momentos importantes do livro, mas substituiu a motivação primária do conde pela busca do seu amor eterno. Essa alteração acrescentou um novo valor à trama literária original, tornando aquele monstro mais complexo, uma vez que fora concebido por Stoker (basicamente) como uma criatura maléfica (ou se quisermos interpretar sua criação, pode representar o perigo do oriente que obriga os ingleses a tornarem-se incivilizados para derrotá-lo)
Por outro lado, quando Del Toro justifica que a motivação de Victor em desafiar a morte é afrontar seu finado pai, em decorrência da morte de sua mãe, ele acaba por substituir uma motivação original muito mais complexa, a ambição do ser humano em desafiar o desconhecido em nome da ciência.
Espelho, espelho meu (Frankenstein, 2025).
A comparação com o livro torna-se inevitável e a decisão poderia até ser acertada se todas as fichas fossem apostadas para construir esse novo argumento. Infelizmente não é o que ocorre e o resultado é um filme que parece uma junção de cenas maravilhosas, mas que, como um todo, perde sua unidade: A releitura fica absorta dentro da história maior que vem do livro.
Novos personagens, como Harlander, perdem relevância rapidamente, parecem existir apenas para justificar uma megalomania laboratorial (bem-vinda, mas que não precisava de explicação), ou para servir de analogia à bilionários atuais em busca da imortalidade, nem que seja de consciência (sendo que em nenhum momento a preservação da memória do cérebro reanimado fora pauta). Harlander, antes de morrer, profere “Eu vou ser a águia que devora seu fígado, Sr. Prometeu” e além de cringe (pela referência rasa ao título do livro) é uma frase que não se paga no filme: não há consequência para sua morte ou mesmo para o mecanismo que é danificado na cena.
O protagonistas tornaram-se menos complexos. Victor é reduzido a um personagem mau, diretamente responsável pela morte de Harlander, Elizabeth, Willian e, pior de tudo, sem tempo de tela para desenvolvimento de sua culpa. Tudo se resume ao seu irmão proclamando “você é o monstro”, um diálogo que expõe uma total insegurança sobre a clareza da mensagem ou descrença da inteligência do público que, nesse momento, já assistira mais de 2 horas de filme.
Nessa salada, a Criatura (encantadora como nunca antes), é um duplo de Victor, sendo odiado pelo seu pai/criador que é responsável pela morte de seu amor/mãe (Elizabeth) e razão de sua ira. Mesmo sendo o ponto alto do filme, ela é relegada à discussão de sua suposta imortalidade e é boa de coração o tempo todo, menos contra os marinheiros…
De Capitão Robert Walton para Capitão Anderson #
O maior exemplo da falta de coragem de investir em sua releitura e insistir em trazer elementos do livro sem o devido esmero está no tempo presente do filme: Capitão Anderson encontrando Victor e ouvindo sua história. No livro, essa parte tem um propósito muito claro de explicar a moral daquela história: O testemunho da presunção de Victor servir para convencer o capitão (que no livro se chama Walton) que seu empreendimento ambicioso de ser o primeiro a chegar ao Polo Norte será sua ruína (e de todos aqueles ao seu redor).
Aguela cena final de Frozen (Frankenstein, 2025).
Porém, em tela, não é explicado que a empreitada faz parte de uma jornada particular do capitão. Em certo momento, inclusive, ele justifica que Victor está sob sua proteção e sob proteção da Coroa, dando a entender que está ali cumprindo ordens externas.
É também no tempo presente que a Criatura, revoltada por sua imortalidade, tortura Victor a viver em sofrimento junto dela. Ela passa a matar indiscriminadamente, mas apenas personagens sem nome ou destaque em tela: seis marujos de um navio com dezenas, contribuindo para a percepção maniqueísta da criatura como boa.
De Prometeu a Édipo #
Um filme (graças a deus) não é apenas o seu roteiro. Frankenstein de Del Toro ainda é uma produção deslumbrante, principalmente pelo palpável esmero com a fotografia, direção de arte, figurino e atuações (a trilha sonora não me empolgou muito, mas eu também não sou fã do Alexandre Desplat).
Frankenstein (2025).
Assitir essa produção só prova como não há superação de uma forma de arte por outra. Mary Shelley, aos 18 anos, escreveu um clássico, não só por sua atemporalidade, por fundar um novo gênero literário, mas também por ser intransponível em sua totalidade, seja para teatro, filme ou para qualquer outra linguagem.
O título original do livro de 1818 “Frankenstein ou o Prometeu Moderno” evoca o mito de Prometeu, seja a) o Piróforo, que roubou o fogo dos deuses para dar aos homens; ou b) o Plasticator, que moldou o ser humano a partir do barro. Em sua adaptação de 2025, Guillermo Del Toro voou perto demais do sol (alerta de excesso de mitologia grega no mesmo parágrafo!) e teve a ambição de nos apresentar um Édipo Moderno: uma pessoa amaldiçoada a viver à mercê da figura de seu pai e apaixonado por sua mãe.
Agora imagine que no fim de todo esse texto exaltando o livro Frankenstein, ao invés de terminar com uma citação de Mary Shelley, eu tivesse o mau gosto de usar uma de Lord Byron? Poisé. É assim que o filme termina… Mas eu não cometerei esse sacrilégio aqui!
Procure a felicidade na tranquilidade e evite a ambição, mesmo que esta pareça inofensiva, como o desejo de destacar-se na área da ciência e das descobertas. Mas por que eu digo isso? Eu mesmo fui amaldiçoado por minhas esperanças, mas outra pessoas pode ter êxito.
Referências Bibliográficas
- Filme Frankenstein (2025) dirigido por Guilhermo Del Toro.
- Filme A Forma da Água (2017) dirigido por Guillermo del Toro.
- Filme O Labirinto do Fauno (2006) dirigido por Guillermo del Toro.
- Filme Hellboy (2004) dirigido por Guillermo del Toro.
- Filme A Espinha do Diabo (2001) dirigido por Guillermo del Toro.
- Filme Drácula de Bram Stoker (1992) dirigido por Francis Ford Coppola
- Filme Cronos (1992) dirigido por Guillermo del Toro.
- Filme Pinóquio por Guillermo Del Toro (2022) dirigido por Guilhermo Del Toro.
Guillermo del Toro’s Pinocchio 2022 Directed by Mark Gustafson, Guillermo del Toro - Livro Frankenstein, ou o Prometeu moderno: Edição crítica de Mary Shelly, traduzido por Martha Argel e Humberto Moura Neto. Sebo Clepsidra e Aetia Editorial, 2023.
- Vídeo “Vale a pena ver o FRANKENSTEIN de Guillermo del Toro?” do canal Fantasticursos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yvuU-jt7NUk.
- Vídeo “O Frankenstein 2025 do Del Toro é bom, mas raso demais pra Mary Shelley (Crítica)” do canal Tralhas do Jon. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fqx8c2o2X_k.
- Vídeo “Frankenstein (2025) - Crítica: Del Toro adapta clássico de Mary Shelley” do canal
Dalenogare Críticas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kh9P-C9HGTE.