As mentiras de Stan Lee: a origem nada original do Homem sem Medo

Este é o texto de estreia sobre o meu projeto de leitura das histórias em quadrinhos do Demolidor! Apesar da obviedade do primeiro texto ser justamente sobre a origem do personagem, só pude ter uma dimensão melhor do que escrever ao conhecer mais o seu contexto no livro “Marvel Comics - A História Secreta”, de Sean Howe.

Dentre todos os aspectos interessantes, um dos principais é contestar a figura construída de Stan Lee e qual seria a sua real contribuição para os quadrinhos (ele definitivamente não é o “bonzinho e genial criador do universo marvel inteiro” e, caso você tenha essa impressão, não se culpe, essa é a imagem vendida em todo lugar, principalmente no documentário com seu nome, lançado em em 2023 no serviço de streaming da Disney).

Por esse motivo, irei trazer aqui algumas declarações do próprio Stan Lee sobre como ele teria “concebido” o Demolidor, deixando para o próximo texto o tema “Método Marvel” e como ele era problemático.

Começou a mentirada… #

No ano de 1964, o que hoje conhecemos como Universo Marvel já estava bem estruturado na editora, que voltava a ter números expressivos de vendas não obtidos desde a Segunda Guerra Mundial. Em 3 anos, Stan Lee, Jack Kirby, Steve Ditko e Don Heck já haviam dado vida ao Quarteto Fantástico, Hulk, Homem-aranha, Thor, Homem de Ferro, Doutor Estranho e até aos Vingadores. Porém, a busca em aumentar o portfólio continuava, principalmente replicando a “Fórmula marvel” (não confundir com “Método Marvel”) que a diferenciava da principal concorrente (DC Comics) e vinha funcionando muito bem até então: Heróis mais humanos, com falhas/fraquezas que os caracterizavam e com poderes que conseguiram de uma maneira não intencional.

Nós já tínhamos criado vários super-heróis antes do Demolidor, e [...] todos tinham limitações. E eu estava tentando pensar: Bem, os leitores parecem gostar de personagens que tem limitações. E qual é a maior limitação que você pode dar a alguém? E bem, qualquer um que consiga transformar um cego em um super-herói está chegando a algum lugar. E então me lembrei de que havia alguns filmes sobre um detetive cego [...] ele era um cara corpulento e tinha um cachorro branco e uma bengala. E era fascinante, esse cara que era cego e, ao mesmo tempo, detetive.

(Stan Lee, 1976)

Stan Lee sempre comentou sobre a inspiração em Capitão Duncan Maclain, um detetive cego que fora adaptado dos romances de Baynard Kendrick para as os cinemas a partir de 1937. E, por isso, se vangloriava sobre a originalidade da ideia do novo personagem para a mundo dos quadrinhos:

O bom e velho Matt Murdock foi o primeiro e, até onde sabemos, ainda é o único herói cego nos anais dos quadrinhos.

(Stan Lee, 1991)

Uma declaração que não soa muito honesta, pois já havia um super-herói cego nos quadrinhos: o Doutor Meia-noite, criado em 1941 (22 anos antes de Matt Murdock) na revista All-American Comics n° 25, da editora que viria a ser a distinta concorrente DC Comics.

Página da história que apresenta a origem do Doutor Meia-Noite. Ela mostra um herói de bota, capa e capuz pulando entre prédios durante a noite. Seu capuz deixa a boca e queixo à mostra e ele usa óculos, parecidos com de natação.

Primeira página de Dr. Mid Nite de (1941).

Apesar disso, o personagem da Marvel ainda é bastante diferente do detetive do cinema e também do Doutor Meia-Noite (que conseguia enxergar no escuro). Afinal, o herói “Daredevil” (“Demônio Desafiador” em tradução literal, mas oficialmente nomeado no Brasil como “Demolidor”), além de ter uma deficiência física, é um acrobata que combate o crime com uma bengala!

Não havia como já existir um personagem assim, não é mesmo? Essa pergunta o próprio Stan responde:

Quanto ao nome Daredevil, sinto muito em dizer que não foi uma ideia original; já havia um personagem chamado Daredevil publicado milhões de anos atrás pela Lev Gleason Publications. Basicamente, esse Daredevil era apenas acrobático. Ele tinha um traje engraçado, metade de uma cor, metade de outra, feito verticalmente. Eu gostei do nome, achei que seria um ótimo nome para um cara cego; ninguém suspeitaria jamais que ele fosse cego e por aí vai. Era um bom nome e agora estava em domínio público.

(Stan Lee, 1976)

Acontece que esse personagem citado (publicado em 1940 na Silver Streak Comics nº 6) não só se chamava Daredevil, como era um justiceiro acrobata de colã que usava uma arma similar (um bumerangue) e também era uma pessoa com deficiência: ele não falava.

Capa da edição nº 7 de Silver Streak Comics, com o título “Daredevil battles The Claw” mostrando um monstro com dentes afiados e longas unhas confrontando o herói Daredevil com um colã metade vermelho, metade preto, um cinto com espinhos e segurando um bumerangue.

Capa da de Silver Streak Comics nº 7 (1940).

É importante levar em consideração que, embora a bengala do Demolidor (da Marvel) não seja a mesma arma, ela é usada de forma igual (é arremessada e volta à mão do herói) desde a primeira revista. Isso sem contar que na nº 5 ela é dobrada e literalmente transformada em um bumerangue!

Quadros da edição nº 5 de Demolidor. O herói aparece dobrando seu bastão de combate e pensando “Posicionando meu bastão num ângulo de 90 graus, posso arremessá-lo como um bumerangue!”. Depois de arremessado, o bastão/bumerangue atinge a mão de um bandido, desarmando-o, e retorna para a mão do Demolidor.

Sequência de Demolidor nº 5 (1964).

Agora, eu tenho uma memória ruim e pode ser que tenha acontecido de uma maneira um pouco diferente do que eu disse [...] De qualquer forma, acho que sempre gostei do nome Daredevil e quando descobri que estava disponível, quis usá-lo. Mas como não gosto de copiar [...] eu queria torná-lo o mais diferente possível do personagem original do Daredevil. Mudamos o traje do DD, mudamos sua origem. [...] Acho que é por este motivo que ele é cego, é um advogado e também muito sério. O Daredevil original, pelo que me lembro, tinha muito humor.

(Stan Lee, 1976)

Apesar dessa afirmação, tanto Matt Murdock quanto seu alter-ego eram muito bem humorados nas histórias, em parte pela forte influência do Homem-aranha. A intenção era tentar replicar o sucesso do cabeça de teia, utilizando essa essência do herói urbano acrobático e piadista, estabelecendo novos elementos que o diferenciasse o suficiente:

O conceito do novo Demolidor não tinha nada de extraordinário: Matt Murdock, estudante esforçado e filho de um boxeador [...] salva um cego de um caminhão de entregas dos Laboratórios Atômicos e é cegado por um cilindro radioativo. Como ele vivia no Universo Marvel, a radiação também aguçou seus outros sentidos, que vêm bem em conta quando ele precisa vingar o assassinato do pai. Murdock cresce e vira advogado, satisfazendo o gancho de Lee para “a justiça é cega” e dando ao Demolidor acesso fácil às ocorrências criminosas

(Sean Howe, 2013)

Matt funda o escritório Nelson & Murdock junto com seu melhor amigo de faculdade, Foggy Nelson, e eles atuam em uma Nova Iorque fictícia onde super-heróis e super-vilões tanto causam problemas jurídicos quanto precisam de assistência para resolvê-los! E como não podia faltar, o interesse romântico (platônico) do protagonista é Karen Page, a secretária da empresa.

Trecho da primeira história do Demolidor, os capangas derrotados falando “tá bem moço... cansamos! agora, quem é você e o que quer?” e “Não é possível! Ninguém pode lutar assim! Deve ser um truque de espelhos”, enquanto o Demolidor está em pé confiante, com seu uniforme amarelo original e diz “Agora que acabou a brincadeira, vou ficar por aqui até o arranjador chegar! Quanto a quem sou, podem me chamar apenas de... Demolidor”

Sequência de Demolidor nº 1 (1964).

Definitivamente não se pode apenas confiar nas declarações de Lee. Portanto, a forma mais honesta de entender a origem do personagem acaba sendo analisar suas primeiras publicações com cuidado. E a partir desta análise é possível identificar particularidades que, somadas, escancaram o absurdo método de produção de gibis da Marvel. A primeira pista é que sua edição nº1 demorou muito mais do que o planejado para chegar às bancas e precisou de quatro artistas (dois não creditados) para ser finalizada!

E isso é apenas o início da dança das cadeiras que foi o cargo de desenhista dos próximos 20 números da revista! Mas isso é assunto para o próximo texto!

Referências Bibliográficas #

  • Edições 01 a 21 de Demolidor, presentes no Encadernado Demolidor: Edição Definitiva vol. 1, 2023
  • Entrevista “A Talk with the men behind the man without fear… some of them, anyway” (1976) com - Stan Lee e Marv Wolman, por Chris Clareament.
  • Introdução por Stan Lee (1991) ao encadernado Demolidor: Edição Definitiva vol. 1, 2023.
    Livro “Marvel Comics : a história secreta” (2013) de Sean Howe.