Van Helsing: De professor multifunção a herói de ação (preso em uma rivalidade eterna)
Recentemente participei como convidado do Podcast Nicolas (sim, é um podcast sobre a produção artística de Nicolas Cage!), especificamente na série “Locadora do Nicolas”, na qual filmes sem a participação do prestigiado ator também são analisados, e a obra em questão foi Van Helsing de 2003!
A ideia desse texto veio à partir da leitura do livro “Van Helsing: The Making of the Legend” sobre a produção do filme, mais especificamente sobre a escolha de transformar o personagem intelectual do livro Drácula, de 1987, em um herói de ação moderno. E parando para pensar um pouco, essa ideia não é tão transgressora assim, pois essa reformulação já vinha acontecendo há anos, e eu posso provar!
O historiador-professor-detetive-médico-advogado-doutor #
Consultando as anotações feitas pelo próprio autor Bram Stoker no processo de escrita de Drácula, nota-se que muitos dos personagens originalmente rascunhados prevaleceram até a publicação, porém um deles, no passar das versões, ia assimilando cada vez mais papéis como médico, professor alemão, advogado, doutor em letras, historiador, detetive e investigador paranormal. Todas esses perfis findaram em uma única figura: Van Helsing.

Nota de Bram Stoker planejando os personagens para o livro Drácula.
Stoker condensou em Van Helsing tantos talentos, títulos e especialidades que o personagem, quase um super-herói, paira perigosamente à beira até mesmo da credibilidade ficcional. Médico, advogado, filósofo e doutor em letras, nosso intrépido herói, não obstante, se expressa no texto original com inglês por vezes incompreensível. Alguns estudiosos de Drácula postulam que o inglês capenga de Van Helsing acaba reduzindo sua autoridade e tornando até mesmo o personagem um pouco cômico.
Na história, o professor Abraham Van Helsing é quem o médico John Seward pede ajuda quando os heróis da trama não conseguem entender o que está acontecendo com a jovem Lucy Westenra (recém-mordida).
Van Helsing atenderá meu pedido por motivos pessoais, de modo que, não importa quais sejam suas exigências, devemos acatar as recomendações. Parece ser um sujeito um tanto arbitrário, mas lhe garanto que sabe bem o que diz, melhor do que qualquer outra pessoa que conheço. É filósofo, metafísico e um dos cientistas mais inovadores de sua época; possui, creio eu, uma mente absolutamente aberta. Tem nervos de aço, temperamento cortante, determinação indomável e notável capacidade de autocontrole. É um homem cuja tolerância ultrapassa a virtude e alcança as raias da bênção, e tem o coração mais gentil e verdadeiro que já pulsou entre os homens. Tais qualidades formam o equipamento para o nobre serviço que presta à humanidade, trabalho que abarca teoria e prática, pois suas ideias são tão abrangentes quanto sua solidariedade.
É ele quem realiza testes com a jovem Lucy para se certificar sobre a suspeita que carrega a devido aos sintomas da moça. Ele tranca as janelas, preenche o cômodo e a própria Lucy com flores de alho e, por fim, é quem descobre que o vilão é um vampiro:
Os seres chamados vampiros existem, e alguns de nós têm evidências disso. Mesmo sem provas em nossa desafortunada experiência, ensinamentos e registros do passado são suficientes para qualquer entendimento sadio. Confesso que, no início, sou cético. Se não treino ao longo dos anos para ter mente aberta, não acredito até fatos gritarem nos ouvidos: ‘Vê, vê, uma prova!’. Que lástima! Se sei antes o que sei agora, ou ao menos suspeito, salvo preciosa vida de alguém que tanto amamos. Mas isso fica no passado e agora precisa trabalhar para que mais nenhuma pobre alma pereça. O nosferatu não é abelha, que morre depois da picada. Ao contrário: fica mais forte e, forte, tem ainda mais poder para crueldades. O vampiro que combatemos tem força de vinte homens e astúcia que ultrapassa dos meros mortais, pois é acúmulo de muitos séculos. Também usa necromancia que, como sugere etimologia, é adivinhação pelos mortos, e comanda todos sob seu jugo. É como animal selvagem, mas bem mais que simples fera; cruel como demônio e sem coração. Comanda, quando ao alcance, elementos: tempestade, nevoeiro, trovão. Também controla criaturas como ratos, corujas, morcegos e mariposas, além de raposas e lobos. Aumenta e diminui de tamanho e desaparece em pleno ar.
No livro, Van Helsing não chega a confrontar diretamente o conde, com exceção na passagem em que encontram Drácula dominando Mina Harker: o vilão avança contra o grupo, e o professor o detém com um envelope contendo uma hóstia sagrada. No final da história, no entanto, para além de sua atuação intelectual e apesar de sua idade (também descrito como um homem forte, de peito rijo e ombros largos”) Van Helsing é responsável por invadir sozinho o castelo de Drácula na Transilvânia, cravar uma estaca no peito de cada uma das noivas dormentes e depois decapitá-las.
Um Homem Sábio #
Nos anos que se seguiram foram feitas reedições da obra, traduções para diversos idiomas e a chegada aos palcos dos teatros, onde uma mudança que se estenderia por décadas tivera início: cada vez mais o protagonismo de Mina Murray/Harker era apagado, para dar lugar a ascensão da figura de Van Helsing. O dramaturgo Hamilton Deane, além de liderar a peça de 1924, também interpretava o importante professor, o personagem com mais diálogos e tempo de cena em comparação ao monstro do título (Carlos Primati, 2018).
Quando chegou à Nova Iorque, totalmente reformulada pelo dramaturgo John L. Balderston, Drácula passou a ser protagonizado pelo austro-húngaro Béla Lugosi e, logo, ganhou sua primeira adaptação oficial para o cinema com o mesmo ator.
O filme de 1931 já traz um primeiro confronto direto entre o Van Helsing e Drácula, em uma cena do professor intercedendo por Mina e sendo reconhecido pelo vampiro:
Van Helsing! Um cientista renomadíssimo, cujo nome é conhecido… até mesmo nos confins da Transilvânia!

Professor Van Helsing em seu primeiro encontro com o Conde Drácula - Drácula (1931)
A conversa entre os cavalheiros procede com o desconfiado Van Helsing mostrando um espelho ao vampiro. O objeto é rapidamente atingido pelo vilão que, desmascarado, vai embora, mas não sem antes constatar:
Pra quem não viveu nem uma vida inteira... você é um homem sábio, Van Helsing.

Professor Van Helsing descobrindo que o Conde Drácula é intolerante religioso - Drácula (1931)
O próximo encontro é marcado pelo conde falhando ao tentar enfeitiçar seu inimigo, que responde com um crucifixo. Ao final do filme, também diferente da obra original, é o próprio professor que derrota e crava uma estaca no coração de Drácula, que dormia em seu caixão.

Van Helsing atrapalhando a noite de sono do conde - Drácula (1931)
O Bravateiro #
A produtora de filmes Hammer, além de adicionar mais sangue na história para realçar o vermelho dos novos filmes coloridos, também trouxe os icônicos Christopher Lee e Peter Cushing para interpretar o conde e o professor, respectivamente.

Is Van Helsing… sexy? - Horror de Drácula (1958)
No filme Drácula, de 1958, Peter Cushing encarna um Van Helsing ainda mais protagonista, mais enérgico e mais charmoso. Sendo, inclusive, a referência mais utilizada para o futuro filme de 2003:
Segundo Crash McCreery [...] a primeira grande mudança no personagem ocorreu no filme da Hammer de 1958 [...]. Foi ideia de Cushing adicionar um toque de bravata ao papel. No final do filme, Peter Cushing deveria simplesmente ir até uma janela e arrancar a cortina, expondo Drácula à luz do sol e matando-o. Cushing leu o roteiro e disse:
E não só isso: antes ele persegue e encurrala o conde em seu castelo, resiste aos seus ataques e usa do intelecto para derrotá-lo, pulando para remover suas cortinas, deixando o sol entrar no salão e atingir o vampiro, que até tenta fugir, mas Van Helsing usa dois castiçais para formar uma cruz e deter Drácula para sempre (ou será que não?).

Se isto funcionou, significa que o Drácula não pode fazer contas com o sinal de adição - Horror de Drácula (1958)
O Eterno Rival #
Com o sucesso, Christopher Lee continuou a interpretar o vilão em novas histórias que se distanciavam cada vez mais da original, reimaginando novas formas de Drácula (ou outro conde vampiro qualquer) retornar e ser derrotado. Demorou 14 anos para que os atores reprisassem seus papéis juntos novamente, só veio a ocorrer em Drácula no Mundo da Minissaia de 1972 (sim, esse é o nome brasileiro de Dracula A.D. 1972).

Cena inicial de Drácula no Mundo da Minissaia (1972)
O filme inicia em 1872 com uma frenética cena de ação, retratando o “último confronto” entre o professor e o vampiro, que digladiam-se em cima de uma carruagem em movimento. Após colidirem com uma árvore, o duelo termina com o ferido Van Helsing cravando um pedaço da roda de madeira no coração de Drácula e ambos morrem.

Drácula no Mundo da Minissaia (1972)
A partir daí, somos transportados 100 anos no tempo, para 1972, e apresentados ao Professor Lorrimer Van Helsing (neto do original), o novo incumbido da responsabilidade de derrotar o Conde, que conseguiu retornar dos mortos após um ritual conduzido por jovens inconsequentes (incluindo a própria neta do professor). E aqui é construída nos cinemas a premissa de que esses personagens seriam rivais eternos, tema esse que é reafirmado na sequência direta Os Ritos Satânicos de Drácula, de 1973.

Is Van Helsing… still sexy? - Drácula no Mundo da Minissaia (1972)
O Trisal Eterno #
A próxima adaptação importante do personagem é no marcante Drácula de Bram Stocker de 1992, dirigido por Ford Coppola. A intenção é notoriamente ser mais fiel ao livro de Stoker e, apesar de uma grande modificação que falarei a seguir, segue sendo o filme de maior projeção que mais se aproximou da obra original.

Prólogo de Drácula de Bram Stoker (1992)
É curioso que a modificação realizada por Coppola não apenas repete a ideia de rivalidade eterna entre Van Helsing e Drácula (pois o padre que confronta o cavaleiro romeno Draculea em 1462 e o professor Van Helsing de 1897 são interpretados pelo mesmo ator), como também estende esse conceito, incluindo o amor eterno entre Drácula e sua esposa Elisabeta, que o vilão acredita ter reencarnado em Mina Murray. Este amor é o tema do filme e o motivo do conde ir para Londres após encontrar a foto da dama nos pertences do advogado Jonathan Harker na Transilvânia.

Mordedor de casadas - Drácula de Bram Stoker (1992)
Você acredita em destino? acredita que até mesmo os poderes do tempo podem ser alterados por um simples propósito? O homem mais afortunado da Terra é aquele que encontra o verdadeiro amor.
O Van Helsing de Anthony Hopkins se destaca por ser excêntrico, mesmo assim é mais condizente ao literário, principalmente quanto a ausência de interações com o vilão, restringindo-se à sua proeza original de decapitar as esposas do Drácula.

Van Helsing afugentando as noivas em Drácula de Bram Stoker (1992)
O 007 do universo dos monstros #
Finalmente(?) Van Helsing teve seu próprio filme em 2004, sendo retratado como um caçador de monstros de 1888 que trabalha para o Vaticano. Ele parte relutante para a Transilvânia com a missão de ajudar a última sobrevivente de uma família amaldiçoada, mas a única forma de garantir a entrada de sua linhagem inteira no céu é derrotar o Conde Drácula! (duvido que algo perto disso estivesse nos rascunhos de Stoker)
O filme presta uma grande homenagem aos monstros popularizados pela Universal Studios, acrescentando ao enredo uma trama envolvendo a subordinação de lobisomens ao conde (algo que já havia sido retratado em O Retorno do Vampiro de 1943) e adiciona o Monstro de Frankenstein como a única fonte de energia que poderia ser usada para dar vida aos filhos (nascidos mortos) do vampiro com suas três noivas.

Does It Come In Black? - Van Helsing (2004)
Essa nova adaptação do personagem ora sabe sobre monstros, ora não sabe, restando ao seu escudeiro Carl o papel (outrora do próprio Van Helsing) de explicar sobre mitologia, folclore e fraquezas de criaturas. O protagonista interpretado pro Hugh Jackman (em plena ascenção hollywoodiana) acaba se aproximando mais de um herói de ação similar a James Bond mesmo, com direito até à cena de escolha de armas mirabolantes para a missão, referência direta à franquia 007. Também é impossível não relacionar seu visual gótico com as possíveis inspirações em Vampire Hunter D e jogos da série Castlevania.
O único elemento que acaba sendo resgatado no enredo é justamente a rivalidade eterna com Drácula, pois no filme é revelado que Gabriel Van Helsing (que tem amnésia) foi responsável por sua morte em 1462, motivo pelo qual ele fez um pacto com o Diabo e se tornou um vampiro. No fim, o herói precisa ser acometido com a maldição do lobisomem para poder derrotar novamente seu antigo inimigo.

Continua sendo o melhor lobisomem CGI do cinema - Van Helsing (2004)
A Força de Drácula #
Apesar do fracasso comercial e de crítica do filme de 2004, a figura de Van Helsing passou a ser cada vez mais associado a um caçador de monstros, seja: em jogos, como na trilogia The Incredible Adventures of Van Helsing (2013-2015) onde o jogador controla o filho do Van Helsing dos livros; ou em séries, à exemplo de Van Helsing (2016-2021) protagonizada por Vanessa Van Helsing, descendente do original, em um mundo pós-apocalíptico.
De qualquer forma, todo esse texto é sobre um personagem coadjuvante de um livro de 1987 que, à sua maneira, esteve presente (com suas reimaginações) em diversas representações artísticas diferentes (nem cheguei a citar histórias em quadrinhos ou outros livros aqui).
As várias interpretações de Van Helsing e sua presença no imaginário popular são reflexo da figura irreal criada pelo autor em 1897, uma pluralidade de papéis rascunhadas no mesmo indivíduo.
O grande desafio de Stoker foi criar alguém que explicasse aos outros personagens quem era o Drácula, porque ele era assustador e como seria possível derrotá-lo. Função esta que é muito similar ao desafio que o próprio escritor precisava transpor para convencer os leitores à continuar lendo seu livro… Seria apenas uma coincidência que Abraham (Bram) Stoker tenha nomeado seu personagem mais inteligente como Abraham Van Helsing?
Referências Bibliográficas #
- Filme Drácula (1931) dirigido por Tod Browning
- Filme The Return of the Vampire (1943) dirigido por Lew Landers
- Filme Horror de Drácula (1958) dirigido por Terence Fisher
- Filme Drácula no Mundo da Minissaia (1972) dirigido por Alan Gibson
- Filme Os Ritos Satânicos de Drácula (1973) dirigido por Alan Gibson
- Filme Caçador de Vampiros D (1985) dirigido por Toyoo Ashida
- Filme Drácula de Bram Stoker (1992) dirigido por Francis Ford Coppola
- Filme Caçador de Vampiros D: Desejo de Sangue (2000) dirigido por Yoshiaki Kawajiri
- Filme Van Helsing (2004) dirigido por Stephen Sommers
- Livro Drácula de Bram Stoker (1897), traduzido por Marcia Heloisa e ilustrado por Samuel Casal. DarkSide Books, 2018.
- Livro Van Helsgin: The Making of The Legend com textos de Stephen Sommers e editado por Linda Sunshine. Newmarket Press, 2004.
- Podcast Nicolas: Locadora do Nicolas. #36 - Van Helsing: O Caçador de Monstros (2004)
- Texto A Sombra do Vampiro por Carlos Primati presente no Livro Drácula de Bram Stoker (1897). DarkSide Books, 2018.
- Texto Decodifican do Drácu la com Bram Stoker por Marcia Heloisa presente no Livro Drácula de Bram Stoker (1897). DarkSide Books, 2018.