Aí vem… O Demolidor, o homem sem popularidade

Após nos debruçarmos sobre as influências para a criação do herói e também analisar a salada mista que foi a arte nas primeiras 21 edições do Demolidor, chegou a hora de falarmos sobre o conteúdo e recepção dessas histórias!

Não só a arte era inconsistente, as tramas também penavam para firmar uma identidade própria ao personagem: ainda fazia muitas piadinhas como o Homem-aranha; Matt Murdock era reconhecido como um grande e conceituado advogado de um escritório que mal tinha clientes; Não tinham dinheiro para pagar o aluguel da sala comercial, porém Matt viajava de navio para Europa para espairecer, isso sem falar que ele morava em uma casa com dois andares em Nova Iorque (um deles era secreto, como base de operações e treino para suas atividades secretas).

Uma das mudanças mais notáveis no personagem foi a cor e design do uniforme na sétima revista (desenhada por Wally Wood e com o vilão Namor, criado por Bill Everett).

Capa da edição nº 7 de Demolidor com o herói lutando com Namor embaixo d'água. O enquadramento dá um grande destaque ao novo visual do Demolidor, com seu uniforme vermelho com fortes sombreamentos em preto

Capa de Demolidor nº 7 (1965).

Tem uma coisa engraçada sobre o uniforme do Demolidor: ele era amarelo e, sinceramente, eu não sou autoridade nenhuma para dizer de que cor um um uniforme deveria ser. Eu costumava deixar isso para as pessoas que faziam a colorização no nosso escritório. E muita gente dizia: “Nós não gostamos do uniforme amarelo”. Então, sendo um homem que toma decisões muito profundas, eu disse: “Ok, que tal vermelho?

(Stan Lee, 2003)

Trecho da edição nº 10 de Demolidor, com o personagem colocando seu uniforme e pensando “Trabalhei em segredo por meses para redesenhar meu traje de combate... Torná-lo mais confortável... Inconfundível! Mas nunca esperei usá-lo contra um oponentes tão fantástico!”

Sequência de Demolidor nº 10 (1965).

A verdade é que, apesar do esforço editorial, a revista nunca vendeu tão bem como outras do catálogo e, sendo uma mídia que não dispunha de renda provinda de publicidade, diversas decisões se baseavam na recepção direta do público.

É difícil de explicar, mas na época em que estávamos criando todos esses super-heróis [..] a única coisa com que nos preocupávamos era se os gibis iam vender. Estávamos tão envolvidos e ocupados tentando fazer com que cada edição fosse tão boa quanto ou melhor que a anterior, que a ideia de como isso seria daqui a 40 anos nunca me passou pela cabeça. E duvido que qualquer um dos envolvidos estivesse pensando nisso naquela época.

(Stan Lee, 2003)

A tática da Marvel na época já era a consolidação de universo compartilhado (que não foi invenção de Lee, mas foi defendido por ele em sua posição de editor a partir dos anos 60), uma “megatrama” com crossovers e uma séria preocupação com cronologia: se um herói fosse preso por um vilão na edição do mês, ele não poderia aparecer na revista de outro herói no mesmo período. Isso também prejudicava os enredos do Demolidor porque em um universo recheado de heróis superpoderosos, viajando por dimensões e planetas, a sua proposta era ser mais urbano que os outros:

A principal filosofia que tínhamos, pelo que me lembro, era deixar o Demolidor mais “pé no chão”. Ele poderia estar resfriado, algo com o qual todos nos identificamos, e não era um cara arrogante e invencível..

(Gene Colan, 2008)

Essa imposição do Demolidor ter tramas mais mundanos o deixava desfalcado quanto à fórmula do sucesso da Marvel: conciliar ficção científica (devido à euforia com a corrida espacial) com dramas românticos (muito populares em novelas e outras séries de quadrinhos da época). E sobre os conflitos de relacionamento, um dos editores da Marvel, Marv Wolfman já destacava alguns fatores que poderiam ter contribuído para a falta de popularidade, como o flagrante elenco de apoio:

Foggy e Matt, por exemplo: o relacionamento deles mudava a cada poucas edições; em um momento o Matt não gostava do Foggy, no outro um tinha ciúmes do outro; o Foggy, em uma edição, dizia algo como “Ele tem o mundo nas mãos, se apenas quisesse aproveitá-lo” e na edição seguinte falava sobre como o Matt era insensível. Em uma edição o Matt era frio, na seguinte já não era mais. Então, minha impressão é que faltava consistência nos personagens; era mais como escrever o que fosse conveniente para a história.

(Marv Wolfman, 1976)

Outro fator eram os vilões: alguns dos principais antagonistas eram emprestados de outros heróis (Electro e Namor). Figuras que viriam a ser mais famosas futuramente como Mercenário e Rei do Crime (também emprestado do aranha) ainda demorariam um bom tempo para aparecer nas tramas do Demolidor. Mesmo assim, parte dos mais importantes adversários do personagem já aparecem nessas primeiras edições, como O Coruja, Homem-Púrpura, Metalóide e Gladiador.

O melhor vilão de todos era o Gladiador, e ele não era nem de perto um dos principais vilões; seria um vilão de segunda categoria em qualquer outro título, mas era o melhor que o Demolidor tinha

(Marv Wolfman, 1976)

Capa da edição nº 12 de Demolidor com o personagem quase caindo, sendo subjugado pelo vilão Gladiador, que aperta a mão esquerda do herói com força. Gladiador usa um colã amarelo e verde, possui um elmo que esconde sua identidade e possui luvas com lâminas giratórias que ficam acima de seus pulsos.

Capa de Demolidor nº 12 (1965).

Falou, falou, falou… e não disse nada? #

Mesmo com tantas inconsistências, as primeiras histórias do Demolidor carregam o charme da gênese da Marvel e quase todas as características principais do personagem já estão presentes (com exceção do cristianismo e do foco no famigerado bairro Hell’s Kitchen). Tanto que a famosa reformulação da sua origem feita por Frank Miller anos depois só viria a afetar consideravelmente a edição nº 1 do personagem.

A troca de artistas causa certo estranhamento, porém é fascinante a riqueza artística que eles trazem para as páginas, principalmente porque cada um tem sua forma não só de desenhar pessoas, como de representar os poderes sensoriais do Demolidor e transmitir aos leitores que uma (super) pessoa poderia fazer todas aquelas acrobacias pelos céus de Nova Iorque.

Capa da edição 21 de Demolidor, com o herói se segurando em uma máquina em formato de coruja gigante voadora. Controlando a máquina está o vilão Coruja com seu sobretudo esvoaçante verde e cabelos grisalhos pisando na mão do Demolidor. Ao fundo há um vulcão em erupção.

Capa de Demolidor nº 21 (1966).

A profissão de Matt também é um trunfo para muitos dos enredos, com tramas que envolvem desde investigações forenses até a renovação de contrato de aluguel do Edifício Baxter (residência do Quarteto Fantástico). Polêmicas quanto ao texto e créditos à parte, a narração de Stan Lee presente em quase todas as páginas, se portando como um amigo que convida o leitor a ser “maravilhar” com as histórias junto dele, adiciona uma certa magia à experiência de ler esses quadrinhos mais antigos.

Eu fui um dos caras mais sortudos do mundo porque trabalhei com os artistas mais talentosos que você poderia encontrar em qualquer lugar: Coen, Romita, Bill Everett enquanto ele ainda estava entre nós. Na Marvel, nós éramos realmente sortudos: nós tínhamos os melhores artistas.

(Stan Lee, 2003)

É enriquecedora a experiência de ler essas 21 edições e depois compreender o complexo contexto que justifica toda a sua produção. Não é curioso que um personagem famoso no meio por ter os melhores arcos dos quadrinhos de herói, teve um início tão conturbado? No fim das contas, apesar de bagunçado, é um excelente (e artisticamente lindo) começo.

Capa do quadrinho Demolidor - Edição Definitiva - Volume 1, destacando a capa de Demolidor nº 4 com arte de Jack Kirby, com demolidor em seu uniforme amarelo, pulando de um prédio e segurando Karen Page enquanto ao fundo, no topo do prédio está o vilão Homem-Púrpura.

Capa de Demolidor - Edição Definitiva - Volume 1 (2023).

Referências Bibliográficas

  • Edições 01 a 21 de Demolidor, presentes no Encadernado Demolidor: Edição Definitiva vol. 1, 2023
  • Documentário “The Men Without Fear” (2003) entrevistando Stan Lee no conteúdo extra do DVD do filme Demolidor.
  • Entrevista “A Talk with the men behind the man without fear… some of them, anyway” (1976) com - Stan Lee e Marv Wolman, por Chris Clareament.
  • Introdução por Gene Colan (2008) ao encadernado Demolidor: Edição Definitiva vol. 3, 2024.
  • Livro “Marvel Comics : a história secreta” (2012) de Sean Howe.